Elena Ferrante, Knausgard e Proust
- Renato Grinbaum
- 5 de set. de 2015
- 5 min de leitura

Hoje é difícil pensar em “movimentos” e “manifestos”, mas não podemos deixar de tentar enxergar tendências, fatos e produções com características comuns que de certa forma evidencia um pensamento, uma ideologia que permeia uma época. Quando vemos a escultura hiperrealista de Sam Jinks, o sucesso dos reality-shows como Big Brother, os programas de televisão sobre a vida comum no Alaska e a gigantesca autobiografia de Karl Ove Knausgard é impossível não se inferir que vivemos uma época em que damos valor à lupa postada sobre a intimidade das pessoas. Seus detalhes aparentemente irrelevantes, uma descrição do escatológico rotineiro, sem sobressaltos. Uma época onde a intimidade está em público. O herói não tem valor, mas o pobre comerciante que tem o hábito de cortar a carne com a faca na mão esquerda, sim. Ou o asmático que expõe sua intimidade escarrando em público.
Não se trata de estupidez ou pequenez de visão. Em primeiro lugar, a tendência é um retrato do interesse das pessoas, e neste sentido todas estas produções, artísticas ou não, possuem um valor de compreensão histórica. Fora isto, a leitura atenta destes dois autores mostra que não se trata somente de uma curiosidade mórbida. Nem patológica.
Elena Ferrante está plenamente inserida neste contexto. A escritora italiana escreve uma prosa que parece estar bem próxima à de Knausgard. Mas não é cópia, nem perde seu valor. Ao contrário. Ela publicou quatro livros, nada tão extenso quanto Knausgard, com sua autobiografia. Parcialmente memória, parcialmente criada, para não dizer ficcional, o que levaria a uma compreensão ruidosa. Assim como Knausgard, ela deixa fluir suas memórias livremente até certo ponto. Sem anarquia, com um cimento bem construído. Não há sequência lógica nas memórias, elas parecem fluir numa sequência ditada pelo frescor das palavras mais próximas. O cimento é percebido aos poucos. Neste seu primeiro volume, ela aborda a construção da personalidade de uma amiga, Lila, envolta na violência simples do cotidiano. A agressividade e o amor possessivo das pessoas. Sem nenhuma falsa psicanálise, buscando “traumas” e “abusos sexuais” concretos e moralizantes. A psicanálise de Ferrante não é a psicanálise aritmética, cheia de culpas, causas e efeitos, ela é uma psicanálise gramática.
O enredo, se é que podemos definir desta forma, gira em torno de memórias mínimas, coladas sem perder sequência e harmonia. Não há ordenamento temporal em Knausgard, ele aparece mais claramente em Ferrante. Nos dois casos, a leitura é fácil e fluida. Nada de minimalismo. Talvez "minimismo", narcisismo das pequenas coisas. Em “A amiga genial, Ferrante disseca a estrutura de violência que limita os impulsos mais íntimos e cria uma consciência coletiva, uma identidade. É o temor pelo outro, a imagem que é talhada pelo grito e pelo sangue que filtram a memória e criam o indivíduo como ele é. Assim como em “Minha luta”, não há ação tão marcante que transforme um livro numa história épica com princípio, meio e fim. Existem lembranças bem escolhidas, ficcionais ou não, que unidas se transformam em algo que é mais do que memória. São personalidade.Esta modalidade de narrativa, que tem seu ápice em Knausgard, é uma das marcas mais fortes da literatura atual, algo que, mesmo se ser um movimento, talvez se transforme num estilo de época. Que tem muito a dever a Proust.
Ferrante não é uma cópia de Knausgard. “A amiga genial” traz uma linguagem bem diferente de “Minha luta”. Ambos são obcecados com a minúcia do mínimo, o detalhe real da memória (ainda que irreal), como se estivéssemos dentro de suas casas, na infância. Knausgard é mais extenso, uma literatura com digressões, mas com uma linguagem mais objetiva. Estamos na Noruega e seu frio que oprime. Big Brother psicológico, glacial. Brilhante.
Ferrante vai no mesmo caminho. Ela busca construir a personagem com memórias artificialmente coladas, numa mesma psicologia, um inconsciente construído pela consciência do escritor. Sem um proposito moral ou prescritivo. Até tenta dizer que quer relatar a violência como seu mote principal, mas a complexidade e densidade dos personagens confere a eles uma tridimensionalidade que não pode ser resumida em uma lição. A aparente irrelevância de sua infância a torna relevante. Enquanto o Norueguês hipnotiza com seus detalhes, como se nos teleportasse para suas memórias, utilizando uma linguagem direta e sem grandes rodeios, Ferrante parece nos encantar com lembranças que são meio vívidas, meio sonho. É perceptivelmente italiana. Sua linguagem é mais musical, ela traz uma certa poesia na narração.
Dois trechos do início do livro logo mostram seu estilo mais literário, quase poético:
“O filho mais velho de dom Achille –eu nunca o vira, mas tinha a impressão de me lembrar dele –foi para a guerra e morreu duas vezes: a primeira, afogado no oceano Pacífico; a segunda, devorado pelos tubarões.”
“Não tenho saudade de nossa infância cheia de violência. Acontecia-nos de tudo, dentro e fora de casa, todos os dias, mas não me lembro de jamais ter pensado que a vida que nos coubera fosse particularmente ruim. A vida era assim e ponto final, crescíamos com a obrigação de torná-la difícil aos outros antes que os outros a tornassem difícil para nós.”
Ou mais à frente afirma que "Com a língua de hoje tento resumir assim: não há gestos, palavras, suspiros que não contenham a soma de todos os crimes que os seres humanos cometeram e cometem."
Uma parte da crítica americana tentou diferenciar os dois autores afirmando que Ferrante seria “feminista” e que denunciaria a violência contra a mulher. Estes elementos até estão presentes na narrativa, mas seria um erro, uma hipersimplificação do livro tentar encaixa-lo numa ideia do crítico. Todo cuidado é pouco: um livro denso e complexo como os de Knausgard e Ferrante apresentam temáticas diversas. Erro é pinçar um aspecto e tentar dizer as ideias de um crítico através das palavras de um escritor mudo. Ambos os autores se aproximam da psicanálise, da análise do comportamento e da sexualidade que se consolidam na mais tenra infância. São autores de formação.
"A amiga genial" lida com uma violência que vai além do seio da família. Agressões de pais e de filhos ocorrem. Sem vitimização da mulher ou da infância. A autora, Lena, apanha da mãe, sofre pressão do pai, sua amiga Lila é jogada pela janela de casa. Mas a violência está em todas as relações. Está nos colegas de turma que não aceitam a inteligência de Lila, na crueldade de don Achille que rouba as bonecas das duas amigas, também na viúva que brigava com a vizinha para se apoderar de seu marido, quiçá de sua 'felicidade'. Está na linguagem. "A amiga genial" está centrado na formação da personalidade e nas dificuldades de Lila, melhor amiga da autora, que carrega o infortúnio de ser mais inteligente que seus iguais. Sem hipóteses, prescrições ou conclusões simplistas, Ferrante mostra como a violência é inerente às relações humanas, tanto nas diferenças concretas, tanto nos aspectos essenciais de nossos segredos, as frustrações e na inveja universal. As relações humanas são recheadas de tensão desde a mais tenra infância, desejos não realizados, comparações, sublimações e um ímpeto para destruição do belo e do bem sucedido.
O enredo migra da infância para a adolescência, Ferrante tem como um de seus pilares a inércia humana: os filhos são a continuação dos pais, a adolescência uma continuação da infância. Há uma sensação de herança e desenvolvimento em toda a sua escrita.
Ambos hiperrealistas nos envolvem em sua profundidade. Knausgard é mais extenso, mais íntimo, não relatando tantos fatos marcantes. Ferrante é mais ligeira, uma espécie de Fellini de Amarcord, procurando se lembrar de fatos pontuais para marcar seus temas. No fundo, cada escritor ao seu modo carrega a paixão pelo mínimo e a mesma obsessão pela memória que constrói a identidade e o mundo real, que no fundo, não existe da forma com que nossos sentidos percebem.
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