Lendo Proust trinta anos depois
- Renato Grinbaum
- 13 de set. de 2015
- 8 min de leitura
"Em busca do tempo perdido" aos dezoito anos foi muito mais uma aventura. Uma espécie de dizer para mim mesmo e para os outros "Já li". Perverso para os clássicos. Contribuiu para erigir uma "base" por um lado, mas foi um desperdício, por outro. Ninguém nunca se importou com o que eu estava lendo, fora eu mesmo. Quantos Tolstois, Dostoievskis, Guimarães Rosas e Graciliano Ramos não foram desperdiçados, gerando uma preguiça tardia de releitura, afinal, eu já li.
Com Proust, a minha curiosidade se reacendeu. Graças à leitura de autores novos, frequentemente comparados ao inovador francês, autores que buscaram o detalhe da memória em seus extensos romances semibiográficos. Tomei a coragem de pegar Proust, de novo, e registrar rapidamente uma leitura mais madura, confrontando com a vontade que um adolescente tinha de se tornar um adulto.
Eu poderia falar do estilo de Proust, de sua linguagem, de seu detalhismo. A importância histórica de seus livros. Sobre a memória e o papel do universo interior na fabricação da realidade. Falar com outras frases as mesmas palavras que já foram ditas, por críticos, estudiosos e acadêmicos, em teses, artigos e entrevistas. Eu poderia me parecer tão inteligente quanto aquilo que eu queria ser aos dezoito anos, mas vou me resumir para escrever sobre a minha leitura. Nunca antes ler foi um processo tão pessoal.

Quando me emociono sobre as páginas agora eletrônicas de "Em busca do tempo perdido", me aproximo mais daquilo que enxergo que foram estes trinta anos entre as leituras. Não sei se um livro como "No caminho de Swann", ou "A morte do pai", de Knausgard, ou "A amiga genial", de Elena Ferrante podem ser captados em toda a sua extensão por alguém que tem dezoito anos. Não porque lhe falte cultura ou capacidade de discernimento. Há algo na literatura que está na identidade entre o escritor e o leitor, e este algo é algo que não pode ser aprendido, mas vivenciado. O que há de mais em comum em todos estes "clássicos" ou novos, insistentemente classificados como "iguais", cada um com sua dimensão de grandeza, é a maturidade. Proust, Knausgard e Ferrante contam suas memórias, nunca através de lembranças puras. Escondem nas entrelinhas segredos que todos entendemos, ainda que sem palavras, nas perdas e conflitos que a vida nos oferece no lugar de sonhos. Uma vida que é construída sobre fatos, ou aquilo que que fazemos com eles. Nos diz Proust:
"E acaso não era também meu pensamento um refúgio em cujo fundo me sentia oculto, até mesmo para olhar o que se passava fora? Quando via um objeto exterior, a consciência de que o estava vendo permanecia entre mim e ele, debruava-o de uma tênue orla espiritual que me impedia de jamais tocar diretamente sua matéria; esta como que se volatilizava antes que eu estabelecesse contato com ela, da mesma forma que um corpo incandescente, ao aproximar-se de um objeto molhado, não toca sua umidade, porque se faz sempre preceder de uma zona de evaporação. Na espécie de tela colorida de diferentes estados, que minha consciência ia desenrolando simultaneamente enquanto eu lia e que iam desde as aspirações mais profundamente ocultas em mim mesmo até a visão puramente exterior do horizonte que tinha ante os olhos, o que havia de principal, de mais íntimo em mim, o leme em incessante movimento que governava o resto, era minha crença na riqueza filosófica, na beleza do livro que estava lendo, qualquer que fosse esse livro."
Mesmo os seguidores mais novos não são muito fáceis quando não temos grande vivência. É muito difícil para um adolescente ler "A morte do pai" e não ficar com raiva da violência e da quase crueldade do pai. A lembrança crua nos passa a impressão de maldade. Mas Knausgard parece nos dizer outra coisa. Mais do que perdoar, ele compreende o pai. Ele relata um homem que ama sua família, mas que em um dado momento decide abdicar de tudo por causa de sua própria infelicidade. Poupa sua família de seu sofrimento e de sua degradação. Enfim, o pai decide, em nome da infelicidade, buscar terminar sua existência através de uma vida de prazeres, alegrias efêmeras que nada mais são do que ruídos gerados para calar a sonoridade interior de suas frustrações. O pai de Knausgard não vê sentido, e de certa forma protege sua família poupando-os de seu sofrimento. Não seria esta uma forma de amor? Como entender um afeto tão destrutivo em plena adolescência?
Ferrante é tão ricaquanto. A inveja, a sociedade que olha para os outros continuamente é o principal mote de "A amiga genial". Tão íntima e memorialista quanto o francês e o norueguês. Mais uma vez, no meio de tantos conflitos e violências, sem vivência e sem o desprazer da realidade é difícil compreender a diferença entre cobiça e inveja. A relação entre Elena e sua amiga Lila é fabulosa. Uma está sempre olhando a outra, cobiçando seu sucesso, sentindo-se infeliz a cada passo para frente da outra. Ao invés de seus vizinhos, que olham para os outros mirando toda sua fúria e seu ímpeto de destruição, a inveja natural do ser humano, Elena e Lila fazem da diferença um motor para crescimento. Elas carregam um amor entre elas que é imbatível, somente uma consegue enxergar seu fracasso como chance de se espelhar na outra, uma relação que dificilmente conseguirão repetir com outras pessoas.
Proust é igualmente destinado aos mais vividos. Não é imediato e dificilmente consegue ser absorvido numa leitura em frente à televisão. "No caminho de Swann" precisa seduzir o leitor de hoje com muito mais esforço do que seus seguidores atuais, graças à sua linguagem rebuscada, musical, que lentifica a leitura do leitor acostumado ao volume e à velocidade. Aos fatos marcantes e imediatamente consequentes. Seu detalhamento de memória não vai ao fundo da intimidade, fora dos limites da privacidade consensuada. Ferrante e Knausgard, ao contrário, não nos poupam da sexualidade, da escatologia e do irrelevante que ocupam grande parte daquilo que nos faz humanos. Nossos olhos de hoje estão mais voltados para esta crueza do que para o rebuscamento da linguagem, que nos diz o mesmo, sem as palavras.
Proust não é somente um cronista da burguesia francesa. Se assim o fosse, seria somente uma releitura de Balzac. Em seu pensamento, fruto de um final de século em que a objetividade e a concretude foram demolidos, ele afirma a dubiedade dos nossos conceitos:
"Mas nem mesmo com referência às mais insignificantes coisas da vida somos nós um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de que cada qual não tem mais do que tomar conhecimento, como se se tratasse de um livro de contas ou de um testamento; nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Até o ato tão simples a que chamamos “ver uma pessoa conhecida” é em parte um ato intelectual. Enchemos a aparência física do ser que estamos vendo com todas as noções que temos a seu respeito; e, para o aspecto total que dele nos representamos, certamente contribuem essas noções com a maior parte."
Proust entra menos na intimidade e na sexualidade, assuntos que iriam ganhar maior visibilidade nos anos subsequentes, graças às interpretações mais fieis ou mais dogmaticas, quando não planas, das ideias de Freud. Muito de seu memorável "No caminho de Swann" gira em torno de uma discussão platônica, sua caverna. O quanto há no mundo de concreto e de construído pela nossa subjetividade. Proust consegue transformar suas digressões, seus quase-ensaios em expressões musicais, perfeitamente harmonizadas com o restante do texto.
É neste contexto que se percebe claramente que "Em busca do tempo perdido", em outro plano, não é um romance autobiográfico. É autoficção e ensaio, neste ponto, fundador de uma das várias modernidades. Seu personagem principal é a memória, ou o indivíduo dela nascido. Mergulhemos no seu texto.
"Chegará até a superfície de minha clara consciência essa recordação, esse instante antigo que a atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, remover, levantar no mais profundo de mim mesmo? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, tornou a descer talvez; quem sabe se jamais voltará a subir do fundo de sua noite? Dez vezes tenho de recomeçar, inclinar-me em sua busca. E, de cada vez, a covardia que nos afasta de todo trabalho difícil, de toda obra importante, aconselhou-me a deixar daquilo, a tomar meu chá pensando simplesmente em meus cuidados de hoje, em meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem esforço."
"Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas em algum ser inferior, em um animal, um vegetal, uma coisa inanimada, efetivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos sucede passar por perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam, e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto. Libertadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco."
Eu gostaria de compreender se um jovem consegue apreender a dinâmica que existe entre a perda e a memória. Na juventude, estamos abertos, buscamos experiências. Desejamos a novidade e a vida do estranho. A maturidade nos traz os fantasmas, vivemos as lembranças que nos assombram feito espectros. Será que o leitor acostumado à velocidade consegue sentir o peso da história? Que se deixa tomar pelo vazio que se esconde por trás das descrições tão extensas? Para aqueles que já viveram algo mais do que o sopro frugal das manhãs de verão, os textos de Proust soam como viscerais:
"Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação."
O que mais imediatamente se diz a respeito de "Em busca do tempo perdido" é que o(s) livro(s) circula(m) em torno de uma crítica à burguesia, à classe média francesa. Não deixa de ser. Num plano superficial de uma leitura imatura, certamente é. Não vamos esquecer que tanto Proust, como a maioria de seus leitores,inclusive eu, fazemos parte desta burguesia, e à parte nossas mesquinharias, narcisismos e o próprio sentido do hedonismo em nossa existência, somos nós que movemos a arte com seu consumo e seu elogio. A arte faz parte da burguesia e de sua história, sem a burguesia a arte continuaria confinada à Igreja e aos salões de um poucos nobres. Sem vivência, tudo parece muito óbvio e imediato. O mundo não é obrigado a se conformar às nossas ideias. "Em busca do tempo perdido" traz algo mais, quando trazemos uma identidade com aquilo que está escrito ao redor de suas palavras.
Além disto tudo, aos dezoito anos enxergava sua cronologia como um quebra cabeças. Nada disto. Como retrato de nosso próprio pensamento, somos uma frase feita por lembranças coladas como cacos de vidro, aparentemente sem ordem. "Em busca do tempo perdido" traz um fluxo de pensamentos e um ordenamento do tempo que não são o de uma história sequencial, mas da intimidade, da nossa vida como a construímos. Por importância e associação, com a forma da realidade e as cores da lembrança. Esta é a memória de Proust,irreal, sem tempo ou sequência, determinada pelos seus sentimentos, pela sua saudade. Quando fala de sua mãe, toda leveza e flutuação é aparente, reina em Proust a falta, a sensação do tempo perdido, eternamente, que retorna meio sonho, transformando o passado naquilo que é mais que uma fantasia, é a própria identidade.
"Na verdade, poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Mas como o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Na verdade, tudo isso estava morto para mim. Morto para sempre? Era possível."
Aos dezoito anos, alguns trechos, não poucos, me passaram em branco, como se fossem somente um elemento decorativo de seu estilo. Não eram. Não tenho dúvida que minha leitura de hoje foi diferente daquela de trinta anos atrás. Não me arrependo, compreendi o livro à luz da minha maturidade. Nada mais Proustiano. Se não apreendi o todo, a leitura me fez mais seguro, recheou minhas lembranças e de certa forma fez com que eu me deslocasse. Não há arrependimento, tive tempo de sobra para recuperar as perdas.
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