Infância e memória
- Renato Grinbaum
- 5 de set. de 2015
- 3 min de leitura

O sucesso de Knausgard é um mistério. Vendeu muito em seu país Natal,a Noruega, sucesso comercial que não foi tão estrondoso nos Estados Unidos. A crítica abraçou-o. De certa forma, transformou-se num novo Proust. Em alguns aspectos. A impressão que fica é que os leitores devoram a crítica e afirmam terem lido o original (Lembrando o excelente texto de Tim Parks:). Além disto, a sua extensão e minuciosidade lembram Proust. Difícil escrever algo que já não tenha sido dito sobre ele.Vamos ver de perto.
Os romances de Knausgard são na verdade a biografia de um homem sem nada de especial na vida, sem nenhum fato marcante que em teoria justifique uma obra deste porte. Mas ele é fabuloso.Poderíamos dizer que vivemos uma época Big Brother, que gosta de viver a intimidade e a rotina, espiar o comum. Excitar-se com o banal. Com o fisiológico. Com o comer. Com o se lavar. Knausgard em teoria faz este perfil. Leva páginas e páginas discutindo seu primeiro porre. A descrição do prazer de defecar numa floresta. Nada, nada, nada. Além disto, o detalhamento mostra que seus romances são primariamente ficcionais, baseados em lampejos de memória. Ele se recorda da cor das meias da avó, de diálogos sobre um jantar comum de quando tinha cinco anos de idade. Coisas que memória nenhuma consegue guardar, são ficções. A roupa que sua professora usava num dia chuvoso de aula. Vamos ser sinceros, com uma descrição destas, seus livros são fadados ao completo fracasso.Em uma outra camada, Knausgard é outro escritor. Suas descrições são belas e envolventes, o que não seria o suficiente para manter a atenção. Nos dois primeiros volumes, ele mescla lembranças da infância com as da vida adulta.
Em “A ilha da infância” não há vida adulta, e talvez por isto seja um livro belo, mas um pouco mais impenetrável, aparentemente sem justificativa de sua existência.Em seus livros há propósito. Em “A morte do pai” ele começa com uma bela digressão sobre a morte e contextualiza todo o texto. Você passa o meio milhar de páginas se perguntando qual o sentido da vida comum, se o abandono da família e da vida, feito por seu pai, tinha justificativa, o se era somente uma depressão medicamente curável. A angústia e o sentimento metafísico permeiam toda a leitura. Também há sentido em “Um outro amor”. Ainda quem menos contundente. Não é só um livro sobre a rotina familiar ou sobre os problemas de sua esposa.
É um livro sobre a arte, sobre a dicotomia entre o ofício do artista e sua vida rotineira.“A ilha da infância” é um livro sobre a lembrança, sobre o engano da memória. Como em seus dois livros anteriores, o autor discute o tema do livro pouco antes de iniciar a narrativa propriamente dita. Aqui, ele fala sobre a fragilidade da memória, o engano da lembrança. Esta é a chave. É por isto que ele não sai da infância em sua narrativa. O que Knausgard quer nos dizer é que não somos feitos de fatos nem lembranças. Todos eles existiram e contribuiram para erigir aquilo que somos. Mas antes de tudo, somos uma lembrança imaginada, uma auto-imagem construida artificialmente. Meio verdade, meio expectativa, projeção do interior. Sinapses ou miasmas, isto é o que menos interessa. Neste mundo de choque entre o que queremos ser e aquilo que é, não existe realidade pura, objetiva, nem uma imaginação que suplante totalmente a realidade. Somos pendulares. Se pendemos para o lado factual, somos monótonos ou pragmáticos, somos amorais e objetivos, quando não psicopatas, sem lei. Se pendemos para o outro lado, somos neuróticos, se pouco, ou psicóticos, quando muito. Nunca estamos num centro perfeito.
A narrativa de “A ilha da infância” é a recordação filtrada, idealizada, daquilo que Knausgard se imagina ser. Por isto não são memórias passadas, são seu presente. O texto é colorido e significativo em cada evento inexpressivo. Mesmo quando erra na linguagem, é instigante. Ele e seus amigos falam como adultos, no vocabulário, na expressão, na lógica. Uma criança de seis anos, ainda analfabeta diria que " ele está a cerca de 15 quilômetros daqui"? É esta narrativa falsamente real, repleta de angústia e significado que fascina. Vale cada linha.Intolerável para alguns, empolgante para outros, os livros de Knausgard são inexplicavelmente bons. Descreve-los é uma missão difícil, seus textos longos, aparentemente monótonos possuem este sentido que precisa ser desvelado, como em “A ilha da infância”. É com esta angústia, ainda que não verbalizada, que as palavras nos movem com tanta facilidade. Acredito que Knausgard tem a habilidade de transformar a angústia e a tensão em motivação, sem qualquer pano de fundo. Tudo parece cheio de significado e angústia. Uma espécie de Big Brother metafísico.
Artigo de Tim parks: http://www.nybooks.com/blogs/nyrblog/2014/jul/19/raise-your-hand-if-youve-read-knausgaard/
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