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O trem da memória

  • Foto do escritor: Renato Grinbaum
    Renato Grinbaum
  • 5 de set. de 2015
  • 4 min de leitura

Amor e memória é um ótimo pretexto para se discutir a função da literatura. Ayelet Waldman aborda um assunto importante e relevante, a apropriação de espólio impróprio, o pós-guerra e o patrimônio do judeu assassinado na Hungria. Aparentemente um tema particular, mas carregado de uma série de universalidades. A posse de bens e sua herança, a justiça, a reparação e a vingança. Entre outros.Ela opta por uma narrativa simples e direta, criando fatos e eventos que prendem a atenção e agarram o leitor, mas que em momento algum se constituem dilemas éticos que exploram e torturam os temas possíveis de questionamento. O livro passa num piscar de olhos, por isto, potencialmente,tem a capacidade de atingir e agradar a muitos, levando sua mensagem de paz e de memória de incidentes trágicos, que náo podem ser esquecidos.


Muitos questionam o hermetismo e a pretensa falta de objetividade da literatura séria contemporânea que não consegue atingir o público que Waldman atinge. Este é um dilema verdadeiramente ético.

O que trouxe o livro de Waldman, que teve a capacidade de alguma forma transformar leitor e não ser uma noveleta a mais? Pouco. Fatos e pequenas passagens. As questões particulares se transformaram no todo, as universais não foram abordadas. O livro é a história, o que podia ser suficiente. Como uma história simples pode ser relevante?

Tome-se como exemplo a primeira parte do livro. O Sargento judeu Jack Wiseman, que tem que tomar conta do Trem de Ouro, que carrega os bens usurpados do judeu húngaro. Ele tem um incidente afetivo com uma sobrevivente, Ilona, mas os dilemas neste relacionamento são mínimos, abordados de forma rápida e resolutiva. Ele não sofre, não faz grandes escolhas. Sua decisão é se deve ou não envolver-se emocionalmente com ela. Neste ponto, a linguagem de Waldman se perde um pouco, deriva para uma apelação que descaradamente visa conquistar o leitor. Ela prefere descrever de forma quase vulgar as relações sexuais entre o casal do que criar artifícios contraditórios de linguagem, e, voltando à trama, nem mesmo uma situação de confronto com os oficiais americanos que roubam relíquias sem nenhuma consideração ética. Waldman faz o registro histórico, e para por aí. No tira o valor do livro, que, aliás, diverte e entretem. Mas ela trata as questões filosóficas e morais como pano de fundo para um enredo bastante simplista e previsível. Assim é a maior parte da literatura de hoje, pesquisa histórica, temas importantes bem explorados no inicio, abandonados em nome da conquista do leitor, transformados em peças decorativas de tramas policiais ou romanceadas que sao sempre as mesmas. Os personagens se tornam planos e sem vontades e a linguagem, mais do que realista, precisa ser escatologica para doar verídica.

Alguns trechos do livro demonstram esta opção pela sedução ao leitor mais casual:

“O homem cambaleava enquanto o sangue escorria por sua camisa. Jack chutou as pernas dele. A queda foi tão forte que os copos do bar pularam.

Quem é o porco aqui? - gritou Jack, mirando a barriga dele para dar mais um chute. - Nazista filho da puta! Quem é o porco? O homem se encolheu todo, protegendo a barriga. Jack chutou sua bunda.”


“Jack nunca mandara uma mulher à merda, e não era agora que iria fazê-lo, mas quando Ilona começou a correr atrás dele pelo campo, gritando seu nome, e implorando que parasse, ele ficou profundamente tentado.”


A literatura precisa de um motivo além do leitor. Sem alguém que leia, ela é um diário pessoal ou uma troca de elogios entre amigos. Ai pecam boa parte daqueles que tentam fazer algo sério e significativo. Se ela se curva ao leitor, torna-se mais um passatempo para as noites maçantes, depois de um dia exhaustivo de trabalho, um cala-boca para a consciência ferida e mal resolvida.


Lendo Amor e Memória lembrei-me de Centúria, de Giorgio Manganelli. Cem romances-rio, de uma página. Linguagem precisa e com as ambiguidades e silêncios, imprecisões que fazem o leitor mergulhar num ponto inacessível à palavra mais direta. Nada aleatório, incisões perfeitamente arquitetadas pelo escritor. Enredos simples mas repleto de significado. O hermetismo surge somente pelo inesperado e pelo incômodo das questões, não por um terreno pantanoso ou inacessível criado por alguém que nao deseja ir além do estancamento do movimento. É deste equilíbrio que Waldman passa longe. Preocupou-se mais em tornar seu enredo atrativo, repleto de suspense, lágrimas e sexo do que discutir todos os problemas que giravam em torno do Trem de Ouro, ainda que estas questões fossem visualizadas como mera linguagem. Ela trouxe a memória, mas não fez dela nada mais do que uma peça em exibição, passivamente numa estante de museu. Escreveu como se não existisse ponto de vista, mas este é um pressuposto básico de qualquer ângulo. A literatura objetiva e impossível, mesmo quando direta.


Não adianta, é preciso um certo caos. O difícil é encontrar o ponto de equilíbrio. Expressividade por um lado e a possibilidade de plateia por outro. Nós, a maioria, vivemos no meio deste pêndulo que cada vez está de um lado extremo do nosso olhar.

 
 
 

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