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Cultura do pessimismo

  • Foto do escritor: Renato Grinbaum
    Renato Grinbaum
  • 23 de nov. de 2015
  • 5 min de leitura

Escrever sobre "Extinção" é quase como ter que reescrever o livro. De tão repleto de conteúdo e de uma ação que não se resume em atos. Mais do que um romance, é uma ficção repleta de ensaios, impossível de ser resumida num comentário de cunho pessoal. Sendo então pessoal, não quero falar da íntegra do livro, muito menos repetir o que é óbvio e já dito uma centena de vezes. Eu me tornaria mais uma vítima de Bernhard, pós-morte. Sua crítica Nietzscheana ao intelecto acomodado e muito quieto. Seria mais um medíocre dizendo o óbvio para me parecer um burguês culto.

Dizer que ele disseca, ou desconstroi com ódio à mentalidade pequeno-burguesa é confirmar o que já na orelha do livro é evidente. Aliás, este foi um dos motes de sua geração, que se apoiou no pós-guerra ao medo do fascismo para apegar-se de forma às vezes autêntica, às vezes de forma autopromocional, a uma ideologia às vezes democrática, às vezes totalitária no extremo oposto, usando uma linguagem muitas vezes hiperssimplificada para as grandes massas, às vezes hermética para desvincular-se da tirania da indústria cultural e seu exibicionismo pseudocultural. Não sei se Bernhard toleraria a cultura gastrofílica tão em voga hoje. Ele a destruiria como tentou minar todas as hipocriosias que conseguia alcançar. Mas nada disto é novidade. Nesta leitura, somente interessa o que mais me incomodou, que é o que sinto de novo.



Durante todo a leitura intrigou-me a associação que Bernhard fazia entre nazismo e catolicismo, dava a impressão de que o nacional-socialismo seria mais próximo a Viena que a Berlim. Jamais tinha pensado desta forma, associava o nazismo muito mais a um extremismo, ou à mentalidade germano-luterana. Bernhard vai além, ele planta uma semente de entendimento do catolicismo. A associação, no fundo, parece lógica.

Não sem razão, não é difícil enxergar que o jogo de aparências e dominação totalitária que marcam o grande estado católico é diferente do individualismo calvinista. O nazismo nasce, pela ótica de Bernhard, do totalitarismo católico, de sua intolerância à ideia em oposto, particularmente reforçada pela disciplina e pela fidelidade do espírito germânico.



Mas não é este ainda o ponto. Só compreendi um dos incômodos mais críticos do livro refletindo acerca de sua escolha pela Itália, seu amor por Roma. O personagem Murau reconhece que a Itália é tão ou mais católica que a Áustria. Mas ele afirma algo que não podemos extrapolar tão irrefletidamente para o modo brasileiro de construir sua sociedade: ele sugere que o latino, o europeu do sul por mais fervoroso e dedicado que pareça, não tem o senso de obrigação, obediência e sociedade que o europeu do norte. Esta avacalhação, de fazer uma coisa pela frente e outra pelas costas deixa o indivíduo mais livre. Sua devoção mais falsa, a ideia totalitária mais frágil, engolida pela hipocrisia do indivíduo, mais ligado ou ao seu prazer ou à sua família do que ao estado. O totalitarismo católico é mais resolvido quando se torna uma noção de coletivo, de estado. Às vezes expresso por violência, outras por um falso amor, ambas exigindo submissão e uma intolerância ao contrário. Para Bernhard, o nazismo foi substituído por um falso socialismo hipócrita, igualmente baseado em submissão e apagamento do indivíduo.



Vejamos. A Escandinávia e a Alemanha de hoje possuem um senso de "justiça", der "igualdade" e de "sociedade" que nos faz inveja. Para os brasileiros que assistem à desagregação da sua sociedade, à perda de referências e de esperança, muito mais. Se tomarmos em conta o espírito de "Extinção", a justiça e a igualdade do norte se parecerão mais com a inveja e a violência do que com uma real aproximação. O justo olha para o outro controlando-o, reparando em cada ato, odiando para que ele não se torne um diferente. Não é à toa que este senso de controle tragam esta justiça e ao mesmo tempo a força de movimentos totalitários que estão sempre navegando abaixo da superfície destes países. Este me parece ser o ódio maior de Bernhard, esta falsa liberdade, a falsa sensação de inclusão, uma hipocrisia bem divulgada como bondade. Uma propaganda nazista, fantasiada de democracia. Amor possessivo, intolerante. Sinônimo de ódio. Em nenhum momento Murau parece ser amado, todas as suas relações são de crítica e reprovação.

Indo além do que está explícito no texto, "Extinção" me levou a uma reflexão que se distancia ainda mais da escrita: então qual é a saída, se Bernhard e sua geração niilista se juntaram a Schopenhauer e Nietzsche para falar da hipocrisia da humanidade como um cuidado de paciente com cancer terminal? Extinguir seu passado seria uma forma de criar um Novo Homem? Uma cura?

Murau parece ser um homem destruído. Um homem que quer apagar seu passado para ser o que ele realmente é. A natureza é cruel: Murau, como todos nós, é seu passado, e a superação se parece mais com uma utopia do que com um ato de legitimidade. Não há otimismo em sua prosa, há o caminho do abismo, e, quando muito, de reparação. Seríamos nós tão cristalizados, impassíveis de transformação? Vejamos por outro lado. Murau precisa de personagens e interlocutores em sua narração. Gambetti. Maria. Ele está o tempo todo falando para um outro ausente, que existe, mas que o acompanha somente em imaginação.



Afinal, quem é este Gambetti? Durante todo o livro, o narrador está se referindo a um certo Gambetti, seu aluno que jamais aparece. Sem ação ou diálogo. Ele conversa com Gambetti, mas somente com uma narração dirigida a ele. São 473 páginas divididas em quase que um só parágrafo, sem experimentalismo ou hermetismo. Há densidade, mas não hermetismo. A leitura é fácil, desde que você esteja disposto a criar seus próprios limites. Dentro desta imensidão de reflexões e ideias, de odio à falsa objetividade da memória pela fotografia, Gambetti está presente como uma testemunha, ou alguém o qual Murau parece pedir a compreensão ou somente um julgamento. Gambetti parece ser somente um pretexto. Alguém que existia no universo de Murau, mas que era somente um pretexto. Sem pretensão à uma filosofia mais definitiva da existência, Bernard parece nos dizer que todo diálogo no fundo é um monólogo. É uma expiação e um caminho de saída pela palavra.É aí que tive a impressão que "Extinção" potencialmente não vive só de pessimismo. Se Bernahard não pensou, pelo menos eu tive a impressão de que em seu livro ele apontou a saída pela palavra, pela reflexão, intermediada pelo outro. Ele precisa de Gambetti mesmo ausente como confessor e como ponte, como uma transposição para a mudança. Para destruir, não precisaria da palavra. Nem da compreensão ou da narrativa. O outro, no caso Gambetti, seria o ponto de apoio para o mundoapós a extinção. Murau parecia se importar com a opinião de Gambetti, e se havia a preocupação, ele não poderia se extinguir por completo. Se não fosse assim, o pessimismo seria extremo, e somente sobraria para a humanidade, e seus contínuos erros imperdoáveis, uma contínua extinção.

 
 
 

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