A irracionalidade da palavra
- Renato Grinbaum
- 21 de jan. de 2016
- 3 min de leitura
Mais um livro relido, num intervalo de tempo que passa dos trinta anos. 'O Golem' , de Gustav Meyrink estava entranhado entre as fibras musculares mais intrínsecas do coração, respirando junto com cada assopro meu, como parte da minha personalidade. Mais do que memória, guardava em mim a impressão de um livro que havia me formado, que havia me feito, como se todo livro não fosse um tijolo que liga minhas juntas e suporta cada palavra que julgo dizer por mim.
Até hoje me lembro das vielas de Praga e suas casas medievais,mo cenário expressionista e o clima fantástico que alimentava a vida deste Golem feito de ideias. Golem que não é um monstro, muito menos a apologia de um Frankenstein lendário. Antes de tudo, o Golem é judaísmo, a vida é alimentada de palavras, e não de imagens (ídolos, símbolos ou adorações que remetem à adoração sem demandar compreensão, e muito menos aceitar réplica).

Já não sou o mesmo dos meus doze ou treze anos, muito menos 'O Golem' o é. Sabia que o livro não é a lenda do Golem contada literalmente, mas uma reinvenção (releitura) nos tempos do próprio Meyrink. Eu me lembrava da narrativa como uma sucessão de simbolismos expressionistas no meio de uma Praga mégica. Não estava errado. O livro é narrado pelo personagem principal, Athanasius Pernath, um judeu que vive entre o sonho e a realidade, sem que se perceba o quanto é o Golem ou sonha com ele. A narrativa esta dentro e fora do personagem, mudando o foco até que se perceba a identidade real do personagem. As várias histórias paralelas, assustadoras ou curiosas, cruzam as ruas de Praga e criam um clima quase irreal. O livro não é uma narrativa de terror, mas há terror em sua irracionalidade, na sensação de psicodelia muito antes deste termo ser criado.
Meyrink foi um quase modernista pouco reconhecido numa época de Prousts, Musils, Brochs e Manns, entre outros. Mas anda lado a lado com Kafka e Bruno Schulz. Seu irracionalismo até poderia ser confundido com um misticismo anterior, mas o que tem de mais moderno é o múltiplo foco determinado pelo narrador. Talvez seja o mais simples em termos de linguagem dentre os autores da nova literatura da época, com certeza foi engolido no meio de uma corporação que não avalia somente o mérito, mas também a sociabilidade, o momento, a venda e em algumas ocasiões a sorte. Sua capacidade de imaginação e voo através do sonho é cativante.
Meyrink jamais será tratado como um ponto de virada na literatura. Não só por parecer fincado na literatura fantástica do século XIX. Principalmente por optar por uma linguagem objetiva, por cadenciar a narrativa numa sequência temporal, fatos críticos num momento em que se buscava a subversão das estruturas. Ainda assim, a presença do sonho, da magia, a distorção da realidade são elementos sedutores que garantem o afeto a Meyrink no coração da mudança, e a compreensão que toda transição para ser completamente efetivada precisa ter nuances graduais. Talvez tenha sido este 'conservadorismo' ingênuo uma das causas da minha afeição eterna por este livro, talvez tenha sido esta uma das portas a ter aberto meu interesse pelos contadores de história mais coxos.
A literatura fantástica carregou o romantismo em muitos de seus passos, a literatura de horror, o clima sobrenatural. Meyrink de certa forma é herdeiro desta tradição. Em 'O Golem' ele dá um passo além, que o coloca como um quase modernista, ainda que sua linguagem e cadência venham se juntar ao período predecessor. O fantástico aparece pela sua ligação com a cabala e com sua afinidade pela magia. É difícil dizer se ele percebia o que ele estava ajudando a criar, com sua prosa expressionista. 'O Golem' não é uma fantasia assustadora romântica, é a visão de Praga, do mundo, aos olhos dos outros. Do gueto, do judeu, do místico. Assim como seus colegas modernos, Meyrink mostra que não há realidade objetiva. Há a verdade da memória (Proust), do labirinto (Kafka), da poesia (Broch) e do sonho (Schulz). Ao contrário do que rezam as ideias, a verdade não é somente aquela do vencedor, porque existem muitos vencedores e ainda assim os perdedores sobrevivem com seu lado da derrota. Se a versão vale para a verdade política, nada é tão simples para a verdade vivida, onde se misturam não somente as versões, mas as memórias e os sonhos.
Após décadas, dei novas lembranças à memória que guardava de 'O Golem'. Novas lembranças, novos sonhos, outro livro. Outro leitor, também. Na adolescência, 'O Golem' mais me encantou pelo clima sombrio e distorcido de Praga. Agora mais me atraiu a distorção por si só, o olhar lateral que em suas somas constitui o olhar central, nunca definido por um aspecto só.




Comentários