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O insubmisso Michel Houellebecq

  • Foto do escritor: Renato Grinbaum
    Renato Grinbaum
  • 7 de fev. de 2016
  • 6 min de leitura

A França Muçulmana




Michel Houellebecq é um autor fabuloso. Tosco, grosseiro, direto e franco, polêmico mais do que controverso, sem qualquer papa na língua ou desperdício de tempo em técnica literária, uso da língua ou sonoridade das expressões. Absolutamente inadequado. Talvez por isto mesmo essencial. O mundo pós-comunismo foi invadido pelo repertório politicamente correto, que em uma certa dimensão se aproxima da propaganda nazista. Mudar as palavras, amenizar as expressões, para não desvelar a intenção. Assim vemos uma hipervalorização do deficiente, transformado em vítima. Ele merece o melhor de nós, afinal não compete pelo mesmo espaço. Vemos o abandono das diferenças, como se todo julgamento crítico fosse sinônimo de racismo.

Lemos palavras suaves e melodias do mundo, publicadas pelas mesmas grandes corporações. Agressões transmitidas com carinho: disponibilizar profissionais para o mercado, não demitir. Rituais de inclusão que visam mais a mídia. Não estou dizendo que algumas destas alidade e intervenções não sejam importantes, mas há um quê de ideologia imposta e manipulação em parte disto tudo. O politicamente correto nos trouxe um mundo insosso. Um mundo onde a culpa é sempre nossa. Se existe injustiça, temos que ter flexibilidade, resiliência. E não apontar mudanças. Na verdade, politicamente conveniente. Submissão. Por isto é importante um Houellebecq.


Ser crítico e fora do esquadro pode ser uma postura relevante, quando não é somente uma jogada para se garantir um lugar ao sol. Houellebecq já bombardeou o turismo, o turismo sexual, a autoajuda, o politicamente correto, a pedofilia, o orientalismo, os hippies, a arte contemporânea e ele mesmo.Sem perdão. Foi cruel matando a si mesmo de forma sangrenta em um de seus livros. Sem perdão.


Seu último livro não podia ser mais oportuno e melhor colocado. 'Submissão' aborda as relações do ocidente com os países muçulmanos, a islamofobia. Conta a história do processo de eleição de um governo islâmico na França, num futuro assustadoramente próximo. A transformação de uma Europa que se matou, derrotada, que não tem força nem mesmo para tentar descobrir quem ela é. Um França submissa, que se entrega por preferir um modelo incômodo que modelo nenhum. Não há no livro uma impressão agressiva de ódio à cultura islâmica, Houellebecq nos choca com os costumes que não aceitamos, apesar de dizermos que somos relativistas e que toleramos as diferenças. Balela. Ele nos deixa a sensação de estranhamento, de diferença, de medo de uma cultura que não temos como nos conformar.


Então onde se situa o problema? No outro, aparentemente rechaçado, ou em nós mesmos? Esta é a grande discussão que vislumbro em 'Submissão'. Não vejo discriminação xenofobia como afirmam aqueles que leram mais rapidamente este ou qualquer outro livro do petulante francezinho. Se levarmos por este lado, a primeira impressão sobre seus livros será a de um escritor moralista, que defende valores racistas e hierárquicos, se não a disciplina imutável de um mundo que não passou pelo renascimento. Numa primeira camada esta parece ser a verdade, mas é preciso ler com mais cuidado para se perceber que Houellebecq é exatamente o oposto disto. Entendo que a discussão deve ser feita dentro do contexto Houellebecq. Uma vontade de provocar o indivíduo e sua cultura, muito mais do que tentar implodir a política em seu aspecto macro.


Somente como aperitivo, que reforça inicialmente esta compreensão: um de seus alvos em 'Submissão' é Marine Le Pen e a direita francesa. Bem verdade, a primeira leitura nos parece levar às ideias de Le Pen. Engano. Ele não atribui a falência da Europa aos videogames, ao heavy metal e às drogas. Fala da família, mas recorre à falta de

estrutura, não ao modelo único cristão. Não tem saudades de um mundo ordenado pela crença monoteísta, é um decadentista, daí sua contínua citação a Huysmans. Não bate no sintoma, vai ao cerne, à causa, que não tem lado direito nem esquerdo. E mais, se Houellebecq fosse tão radicalmente direitista, teria um posicionamento lateralizado mais claro. Ele não poupa a direita francesa de sua serra elétrica, no mais sangrento estilo Tarantino. Por isto, não é o caso. Sarcástico e direto, ele não se resume a atacar um lado da questão, ao mesmo tempo que discorda de uma facção, ele implode explicitamente Hollande, Sarkozy, o lado oposto. Houellebecq nos diz que no essencial, são muito iguais.


Quando Houellebecq polemiza com suas ideias muitas vezes chocantes, aparentemente defendendo pontos de vistas moralizantes e radicais, no fundo ele não está. Acredito que seja o maior defensor da arte e da liberdade que desfrutamos, e de uma sociedade livre para desenvolvimento individual e coletivo, com amplos direitos civis. Não o vejo num mundo diferente deste. Ele jamais seria tolerado num regime totalitário e repleto de censuras. Seria queimado em público, à luz do dia, suas cinzas jogadas no meio do oceano para jamais serem identificadas ou recompostas em um memorial. O que ele aponta é nu e cru: não existem ações, por melhores que sejam, que não tragam reações, oposições ou mesmo desenvolvimentos que não sejam a semente de seu fim.


Vejamos como exemplo a discussão que ele faz sobre o patriarcado. Seu personagem principal defende a estrutura patriarcal da família. Admite excessos, violências e injustiças. Na verdade não defende verdadeiramente o patriarcado. Diz que é a única estrutura familiar e de sociedade que o ocidente conseguiu fazer com sucesso (apesar dos efeitos colaterais).Sua pergunta é: sem patriarcado, o que somos? Houellebecq tenta nos dizer é que trocamos uma estrutura injusta por estrutura nenhuma. Ideias dispersas, individualismo, falta de identidade. O que ele quer questionar é a nossa ausência de modelo, de ideal, de identidade. Uma civilização, uma cultura que se dispersa em fraqueza, falta de ideal comum, de cimento, embriagada por pequenos discursos de ego e lideranças que traem seus ideais por pequenos brindes. Certo ou errado, ele está mirando no nosso individualismo, no reinado do hedonismo que tanto prezamos e da nossa falta de disponibilidade para tratar das questões universais (quando muito, das minorias, daquelas que nos interessam ou não nos ameaçam).


Ele não deixa de admitir que faz parte e se orgulha de ser individualista e hedonista. Em geral seus personagens, em livros anteriores, são viciados em arte, em sexo, suicidam-se com extrema facilidade. Não toleram o desprazer, a decepção. Em 'Submissão', seu personagem principal é quase um amoral, viciado em sexo como quase todos os seus personagens, então como dizer que ele defende um moralismo conservador? Ele nos esfrega na cara é o fato de que como sociedade perdemos força, em nome do nosso conforto e da nossa comodidade. Perdemos sentido. Neste aspecto, Weber, Camus. Até mesmo Freud. Bauman. Qualquer um desacreditado neste modelo individualista, falando numa linguagem que nos conforta (Bauman) ou que nos agride (Houellebecq), estará chegando ao mesmo ponto, que é o central do livro: No confronto entre uma sociedade organizada e capaz de sacrificar seus filhos através de suicídios programados com uma outra sociedade que não é capaz de abdicar de seus prazeres em nome da convivência com o outro, que resultado esperamos?

Este é o ponto que mais me toca. Trocamos o ruim pelo nada, ou quase nada. Disperso. Primitivo, cada um por si. Coração das trevas, eu diria. Ainda mais: hedonismo filtrado. Transformamos nosso mundo em uma sociedade que adiciona indivíduos transformá-los num resultado. Cada um em sua célula. Trocamos ideias por sensações. Nossas cidades ganham restaurantes e perdem livrarias. Pensamentos por sabores. Não somos cidades que debatem suas ideias. Nossas revistas publicam imagens e escondem ideias. Somos escravos da fotografia. Até onde eu compreendo, este é o universo de Houellebecq, de 'Submissão', o da fraqueza do individualismo pós-moderno. Sociedade que é pacificamente dominada pela unificação quase medieval de uma cultura de outro. Assusta. Incomoda. Parece pregação xenofóbica, mas é autocrítica num ponto que não desejamos nenhum questionamento. A unicidade dos nossos prazeres, e o nosso direito de escolher a sensação que mas nos seduz. Questionar nosso hedonismo não está à direita nem à esquerda. Muito menos no centro. Esta na convergência, no núcleo da nossa existência, no âmago da questão. Nada é tão simples, e muito menos indolor.


No final das contas, Houellebecq está nos falando de nosso egocentrismo e imobilismo, do individualismo e submissão pelo desinteresse pela coisa pública, do narcisismo e passividade, da falta de força moral e da hipocrisia dos nossos valores mais benevolentes: a aceitação incondicional e a resiliência, ou aceitação da dominação através da flexibilidade e da falta de resistência. Houellebecq incomoda porque acerta em cheio os pilares das nossas verdades. Aquilo que temos como inquestionável, como nossa vontade moral. Fala do nosso medo de derrota, porque já não somos uma sociedade plena, e sozinhos não temos coragem. Muito menos desprendimento. A leitura de Houellebecq é uma viagem obrigatória para aqueles que não pensam em resiliência ou submissão, mas sim em espírito aberto para transformação.



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