Um clássico pouco conhecido
- Renato Grinbaum
- 13 de fev. de 2016
- 4 min de leitura
Li 'Às avessas', de JC Huysmans, pela insistente citação em outro livro, 'Submissão', de Michel Houellebecq. Huysmans é repetidamente evocado por Houellebecq, como um grande pensador da decadência e da arte do Homem burguês descristianizado. Imediatamente terminado o primeiro, passei para o indicado. Uma surpresa, que me faz raciocinar rapidamente.

Muito do que falou Houellebecq está facilmente visível neste romance de 1884, assim como a analogia de 'Às avessas' com 'Submissão'. Huysmans é autor decadentista. Ao contrário do realismo e naturalismo da sua época, ele enxergava o homem fora da natureza. Embevecido, se não embriagado pela arte, pelos prazeres, pela cultura que é fora do natural, em seu romance ele descreveu Des Esseintes, um rico herdeiro de família decadente que vendeu quase todo seu patrimônio para viver entre as artes, distante do padrão de vida que chamamos de real.
'Às avessas' é particularmente brilhante, por não parecer fazer parte do seu tempo. Por mais que tentem classificá-lo quase como decadentista ou simbolista, sua novidade o coloca além de qualquer rótulo. Não há enredo na narrativa. Huysmans alterna descrições e digressões sobre a arte, negando tempo, personagem e ação. Algo inusitado ara o século XIX. Não tenho dúvida que foi lido por Joyce, Beckett e Proust. Especialmente este último, que tem muitos pontos em comum com seu conterrâneo, as longas descrições, as figuras de linguagem, a poesia quase visível de suas palavras.
O Homem de 'Às avessas' é o Homem moderno que nascia, muito parecido com o Homem romântico, talvez mais entediado e desacreditado do mundo de ganhos infindáveis da civilização. Mas ainda assim hedonista, individualista, aparentemente dono de seus atos e únicos. Homem que substituiu a fé pelo gosto, e que precisava loucamente tentar compreender quem é, achar sua identidade. Indivíduo que fazia, como faz, questão de exibir seu gosto, o impõe, como se esta fosse a sua identidade. Mas é só sua aparência.
Em Huysmans o Homem burguês é pequeno e despreza o mundano, o Homem burguês de falsa cultura - é o Homem de Houellebecq, entidade de certa forma Nietzcheana. Aparentemente grande em cultura mas pobre em vida coletiva. Antecipando-se ao modernismo, Sua forma de desprezar a burguesia, seu conformismo, seus símbolos de status veio através da forma narrativa. Huysmans criou uma obra que desprezava o público, porque não dava a ele o óbvio. O enredo, a história fácil, a emoção, elementos da vulgaridade e do tédio que enxergava nos salões e nas imagens de sua época. Rumando no sentido contrário de seus contemporâneos, crentes na descrição da natureza e da objetividade de sua descrição, como religião Huysmans exigiu imersão e doação à sua linguagem. Mostrou caminhos tortos para a retidão; perversamente, o caminho sensorial da arrogância de um mundo burguês. Para desafiar uma elite, criou uma obra para outra elite. Aí reside a polêmica. Ele diferenciou uma cultura alta, a dele, inacessível, para poucos que questionam, e ironizou o burguês medíocre, mediano. Criou-se um dilema. É difícil saber se esta criação era uma nova forma de elitismo, ou se apenas um espelho invertido, uma forma de dizer não sem parecer vulgar e sem qualquer sentido que não o meramente estético.
Huysmans nos mostrou em nenhuma obviedade que ainda não dominamos nosso senso de inconformismo. Ao nos desgrudarmos da forma mais acomodada de burguesia, nos mergulhamos no nosso mais profundo individualismo. Outra forma de burguesia.
Um trecho do livro diz mais do que qualquer palavra:
"Era agora incapaz de compreender uma só palavra dos volumes que compulsava;seus olhos não liam mais; parecia-lhe que seu espírito saturado de literatura e de arte se recusava a continuar absorvendo-os.
Vivia de si mesmo, nutria-se de sua própria substância, à semelhança desses bichos adormecidos, enfiados num buraco durante o inverno; a solidão agira-lhe sobre o cérebro, feita um narcótico. Após tê-lo a posto, a princípio, nervoso e tenso, trazia-lhe agora um torpor assombrado de vagas cismas; aniquilava os seus desígnios, desfazia as suas vontades, promovia um desfile de sonhos que ele suportava passivamente, sem mesmo tentar subtrair-se dele.
O confuso acúmulo de leituras, de meditações artísticas em que se empenhara depois do seu isolamento, usando-o como uma barragem para deter a corrente das antigas lembranças, fora bruscamente arrastada e o caudal despencava, lançando por terra o presente e o futuro, a tudo afogado sob a superfície do passado, enchendo-lhe o espírito de uma imensa extensão de tristeza sobre a qual flutuavam, semelhantes a ridículos restos de naufrágio, episódios sem interessa da sua existência, ninharias absurdas."
Neste outro trecho, ele nos mostra outro lado do burguês anti-burguês, sua simbolização da natureza e da arte. A deificação, o sentido, a distinção trazida para o terreno da arte e da apreciação:
"Ao mesmo tempo que seu gosto literário, suas preocupações artísticas se haviam refinado, interessando-se somente por obras escolhidas com rigor, destiladas por cérebros atormentados e sutis; ao mesmo tempo, outrossim, que se tinha afirmado o seu desgosto das ideias muito difundidas, livrara-se de toda borra sua afeição pelas flores, clarificando-se retificando-se, de algum modo.
Ele comparava naturalmente a loja de um horticultor a um microcosmo onde estavam representadas todas as categorias da sociedade: suas flores pobres e canalhas, as flores de pocilga, que só se acham no seu verdadeiro ambiente quando repousam sobre o rebordo das mansardas, raízes comprimidas dentro de vasilhas de leite e de velhas terrinas, o goivo, por exemplo; flores pretensiosas, convencionais, estúpidas, cujo único lugar são os cache-pots de porcelana pintados por mocinhas, a exemplo da rosa; por fim, as flores de alta linhagem tais como as orquídeas delicadas e encantadoras, palpitantes e friorentas; as flores exóticas exiladas em Paris, no calor dos palácios de vidro; as princesas do reino vegetal, vivendo à parte sem nada em comum com as plantas de rua e as flores burguesas."
Comments