No Coração das Trevas
- Renato Grinbaum
- 23 de mar. de 2016
- 3 min de leitura
'O mal obscuro' é uma viagem pelo coração das trevas. Se Conrad explorou a selva para encontrar a maldade irracional do Homem lúcido, Berto refletiu a floresta interior, o medo do escuro e os incêndios dos meses secos.

Seu livro é uma autobiografia, mas nada de história, aventuras ou autoproclamações. Berto atinge a livre associação, o fluxo de ideias contínuo, uma narração de intensidade acachapante. Não é uma viagem fácil, é um jornada real pelo irreal que povoa a nossa memória. Não como nossos pais fizeram nossa vida, mas como entendemos cada palavra e criamos significado daquilo que parecia simples. Não há culpa, há a distorção que é própria da construção da nossa identidade. Seria importante traçar duas analogias com Giuseppe Berto. A primeira é com Thomas Bernhard. É muito evidente que o estilo de Bernhard está em consonância com o de Berto. Ambos escolhem a paisagem interior para descrevê-la com detalhes. Ao invés de fatos, pensamentos, raciocínios, deduções a respeito dos fatos que se encontram fora da caverna. Assim é o tempo,. psicanalítico, vem por livre associação, sem preocupação com cronologia. Esta existe, sim, mas é a engenhosidade do escritor que vai desvelando os eventos e construindo a personalidade, até que, no final, temos como conclusão o entendimento da personalidade
do personagem. Outra simetria é o estilo. Frases longas, com inversões de sujeito e predicado, raciocínios ininterruptos. O resultado é uma leitura densa, que precisa ser desbravada. Mas não há hermetismo, nem experimentalismos nem jogos. Somente densidade. Ler Berto e Bernhard é uma aventura no coração das trevas. Existem grandes diferenças entre os dois. Vamos pegar 'Extinção', de Bernhard. Ele tem um propósito maior do que a autoanálise, apesar de fazê-la. Apesar de dissecar suas relações familiares e sociais da infância, ao ponto de desejar a extinção da sua família (em sua memória), o que é virtualmente impossível. Para Bernahrd, esquecer é deixar de existir. Em Bernhard não há o compromisso com a memória realmente sentida, ela é mais evidentemente ficcional, menos densa. Ela busca criar uma elipse, repetindo a memória, a cada trecho com novas nuances, criando assim um 'enredo' progressivo. Bernhard é mais palatável que Berti. Em Bernhard também há a construção de um ferramentário de ideias, sejam políticas ou interiores, ao contrário de Berto, que faz uma certa revelação libertadora, uma espécie de glória à psicanálise. Outra analogia que gostaria de pensar é entre Berto e os novos adeptos da autobiografia minuciosa, como Knausgard. Embora sejam diferentes estilisticamente, têm em comum a dissecção da personalidade, da formação do indivíduo. A memória construída com tantos detalhes que dela duvidamos. Ambos nos fazem pensar se a memória não é o que fazemos dela. Mas o estilo de Knausgard é mais límpido, e ele procura dar uma aura factual às suas lembranças. Knausgard se apega a fatos pequenos, e deles faz uma descrição minuciosa com detalhes impossivelmente reais, perdidos na memória que é reinventada. Berto não precisa reinventar. A memória que interessa é aquela que formou, que se sente, a que se enxerga pela redoma de vidro turvo. Em 'O mal obscuro' nada é claro, mas é profundamente sentido. Esta analogia entre três autores parece imprópria, mas tem seu sentido. Ler todos eles é o mesmo que possuir o fascínio pelo mergulho, não pela distância. Pela memória que forma, pelo detalhe que é nossa personalidade bruta. Ler Berto não é se preparar para o final, nem caminhar em uma estrada imprevisível. Mergulhar na profundeza e na origem dos fatos, na falsa sensação de realidade da memória.
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