Primavera e Inverno
- Renato Grinbaum
- 30 de dez. de 2016
- 3 min de leitura
Escrever uma 'resenha' pode ser somente a tentativa de se elaborar a compreensão de um livro. Nada de julgamento. Nada de classificação ou pretensão. Nesta concepção dificilmente conseguiria elaborar meus pensamentos sem contar o final da história. Sem falar ou escrever, dificilmente compreenderia satisfatoriamente 'A traidora honrada', de Tove Jansson.

Jansson é filandesa, da minoria sueca que mora no país. Autora de uma bem conceituada série de livros infantis, faleceu em 1994 deixando como legado
uma produção de literatura para adultos que aos poucos começa a suplantar o prestígio de seus livros infantis.
Confesso. Quase abandonei a leitura de 'A traidora honrada', Livro que até próximo ao fim estava considerando simples e linear. Puro autoengano. A trama é simples e a linguagem bastante direta. A personagem Kristi elabora um plano, aos poucos invade a vida e a privacidade de Anna, uma velha senhora que mora sozinha, escritora de livros infantis. Kristi aos poucos toma conta das finanças e de toda a vida da velha escritora.
A tensão cresce previsivelmente, você espera um crime, um final dramático. Coloca-se ao lado de Anna, tem raiva de Kristi e de seu irmão dez anos mais novo, Mats, aparentemente um cúmplice ingênuo. Até perto do final, parece um suspense simples e no máximo divertido, mais um policial nórdico. Mas não é nada disto.
Temos pistas em vários momentos que o livro não é tão simplista. Existem símbolos evidentes. O cão, sempre obediente a Kristi, mas com natureza agressiva controlada, aos poucos muda de comportamento. Passa a se tornar mais selvagem e fora do controle da razão, mas afável a Anna, que inicialmente não gosta de cães. Ele é um dos símbolos de um certo irracionalismo que permeia o livro. As ações racionais das duas personagens perde a previsibilidade e a razão, e a natureza de ambas se torna mais clara. Longe do esterótipo da jovem mal intencionada e da velha senhora ingênua. O cão é a primeira chave para o brilhantismo do livro de Jansson.
Outro símbolo são as estações do ano. Cada personagem representa uma estação. Inverno, primavera. Se pensamos na primavera como a bondade e a beleza, Anna, na verdade Jansson parece retratar a iluminação e a poesia da velha senhora como artificiais, como uma fuga do mundo real. Coelhinhos e flores criados numa realidade artificial, distante e sem a proximidade à própria vila onde ela mora. Incapaz de navegar nas intempéries da vida, sobrevivendo longe da realidade, imaginando a perfeição que está longe da vida natural. Kristi, aparentemente malvada, é retratada como o inverno. Estação onde a natureza se expõe ao máximo. Cruel e incômoda, despertando instintos e a necessidade de sobrevivência nas situações mais ásperas. Há maldade aí?
Existe também o barco de Mats, a comida enlatada que Anna ama (a velha senhora odeia comida fresca e natural), existe a floresta. Toda uma riqueza que estava presente desde o início do texto, mas que só fica evidente próximo ao final da leitura.
Esta simbologia desemboca no final inesperado, distante de toda previsibilidade policialesca. Quando achamos que Anna descobriu a maldade de Kristi, e que o conflito será resolvido de forma violenta, tudo se inverte. É neste momento que Kristi abdica de sua maldade e se desvela, desmascarando ela mesma suas maldades para Anna. A partir deste ponto, e percebendo o bem que Kristi fez a seu irmão, nos questionamos o quão sincera é a bondade artificial de Anna, as memórias de sua família guardadas organizadamente desde 1800, seu apego pela tradição e a incapacidade de viver com os outros. Vivendo um mundo artificial é possível ser bom.
A questão que se desenha é delicada. Kristi, simbolizada pelo inverno, é desagradável, má, até anti-ética aos olhos do leitor. Mas assim como o inverno, cinzento e às vezes cruel, seu fim pode justificar o meio. As maldades de Kristi são feitas sem prejudicar Anna, que ganha dinheiro e gerencia melhor sua vida como consequência. Além disto, Kristi tem um objetivo. A realização do sonho de seu irmão, um barco. Seu mal é justificável?
Já Anna, quem sabe um alter ego da própria autora, vive no meio da estética. Da beleza sem finalidade ética, desenhando coelhinhos apesar da crueldade do inferno. Seu choque de realidade, esfregão de ética teria sido um ato tão deplorável?
Bem no início do livro, Jansson coloca que é possível enganar os outros, usar (roubar) seu dinheiro, desde que os juros sejam devolvidos de forma honesta ao seu dono inicial. Nesta fábula moral, mesmo elaborando com bastante calma, é difícil entender o grau de desonestidade de sua personagem principal. Absolutamente brilhante.
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