Cale a boca, na versão de Philip Roth
- Renato Grinbaum
- 10 de jan. de 2017
- 6 min de leitura
'A Marca Humana', de Philip Roth
Já se falou quase tudo sobre 'A marca humana', de Philip Roth. Não seria demais repetir, mas não é o caso. Roth é suficientemente brilhante para não permitir que suas reflexões se limitem a uma dimensão só, com simplificações superficiais e moralizantes. Sempre há algo a mais para se

falar. Do mais imediato, tudo já se disse sobre este livro. 'A marca humana' é um livro brilhante, narrado por um personagem frequente nos livros de Roth, Nathan Zuckerman, com uma fragmentação da narrativa tão natural que passa desapercebida. O mote central do livro é a doutrina do politicamente correto, a censura, o moralismo quase vitoriano disfarçado numa falsa aparência de proteção às minorias. Com facilidade, Roth destrói o falso conceito de liberdade de expressão e direito de minorias do modo que é trazido pela doutrina do politicamente correto. Para apontar a hipocrisia, ele constrói a
história de um professor duplamente censurado, por ter utilizado expressões de duplo sentido para se referir a alunos negros, e posteriormente por ter um romance com uma mulher muito mais jovem, de outra classe social, e exatamente por causa da disparidade, teoricamente estaria sendo oprimida pelo professor, Coleman Silk. Somente esta história brilhante seria o suficiente para dizer que o livro é essencial e inesquecível.
Dentro desta primeira análise, o professor Coleman não é o único personagem com profundidade. A personagem Faunia, amante de Coleman, tem uma dimensão maior do que o papel de uma amante exploradora ou, ao contrário, uma amante explorada pelo desejo do professor. Roth dá a ela uma história, uma profundidade,me alguns dilemas. Um destes conflitos é a sua posição dentro da relação, ela não é somente um objeto de fantasia de Coleman. Ela chegou a pedir para ele que parasse de ensina-la, o que reduziria a relação a somente esta fantasia de Coleman. Sem dar ouvidos a um moralismo imediatista, Roth nos coloca a dúvida: a paixão do casal é autêntica ou funcional? Roth faz questão de não deixar claro. Em alguns momentos, passa-se a impressão de que Faunia seria uma espécie de retorno às origens de Coleman. Mas não, Roth coloca sempre a relação como verdadeira, sexual, o último canto de um cisne de 71 anos de idade que se sente rejuvenescido pelo amor de uma mulher muito mais jovem. Quando se analisa o porquê da censura a Coleman, o porquê da importância da exposição da vida privada de Coleman, fica evidente a necessidade do indivíduo comum ter uma ideia pre-concebida da moral, um seguimento consensual, quando não totalitário de padrões, aceitáveis desde que invisíveis. É este consenso que faz com que as pessoas se satisfaçam com seu próprio fracasso. A desfuncionalidade do casal, sua diferença de idade e classe social poderia ser motivo de fofoca, mas no mundo que aparentemente abraça as diferenças, não merece qualquer perdão.
'Você não está brigando num mondo em que seus inimigos querem destruir você expulsando-o do seu emprego para poder colocar um deles no seu lugar. Você não está enfrentando um bando de elitistas que posam de democratas e escondem a ambição por trás de ideais grandiloquentes. Agora você está brigando num mundo em que as pessoas não se dão ao trabalho de disfarçar a crueldade por trás de uma retórica humanitária.' (Pg 108)
O imediato fica restrito a este ponto. Roth é inesgotável. Ele sai de uma crítica simplista para ir ao âmago da nossa intimidade. Qualquer um de nós se identifica facilmente com algum ou todos os seus personagens. Mesmo o que parece irrelevante não está inserido gratuitamente, foi meticulosamente pensado para se aumentar as dimensões de uma questão que não pode ser restrita a certo/errado, gosto/não gosto, direita/esquerda, conservador/humanista. Quem dera o mundo fosse somente uma dicotomia. Talvez uma miríade de dicotomias desdobradas.
A discussão de alguns pontos periféricos nos ajuda a compreender o que Roth estava realmente almejando em 'A marca humana'.Roth constrói uma série de personagens e situações, inclusive um final que parece muito estendido, mas que na verdade são geniais, e essenciais para consolidação das suas reflexões.
Em primeiro lugar, ele poderia ter construído a maior inimiga de Coleman Silk, Delphine Roux, de forma plana e superficial, como uma vilã do politicamente correto. Mas não é. Assim como Faunia, ela tem densidade própria. A professora indicada para contratação pelo próprio Coleman não é exatamente uma traidora, papel facilmente imputável a ela por ser o cérebro por trás da reação de ódio a Coleman. A atitude de Delphine com Coleman é intolerável. Ela é a oposição ao professor, ela escreve cartas anônimas e se utiliza de sua morte para esconder a sua atitude reprovável. Sem dúvida, Delphine é deplorável, e deveria ser uma vilã. Mas não é. Roth dedica um longo capítulo à sua história, e não é algo colateral na história. Delphine é um pouco como Coleman, um pouco como todos nós. Ela era uma professora francesa, acostumada a uma tradição de verborreia verbal e hermetismo de ideias, que decide negar sua história, quebrar laços com família e seu meio para provar que é capaz de ser bem sucedida à sombra. Vivendo uma vida do outro, criando imagens e perfis do que não se é em nome de uma imagem pública. Uma grande, imensa mitologia moderna. Ela constroi uma vida desenraizada, solitária, com títulos e sucesso. Roth se pergunta: valeu a pena? O que temos num mundo onde as pessoas precisam desafiar sua história, quebrar paradigmas para serem exemplo de sucesso? Numa dimensão diferente, Coleman também desafiara sua história e negara seu passado para sobreviver, para se provar que era capaz de ser algo. Transformou-se em algo que não era. A semelhança entre Delphine e Coleman mostra o outro lado deste politicamente correto, um mundo em que remeter à sua própria identidade, sua origem, à sua história é doloroso, daí a necessidade de contenção da expressão. Ninguém precisa ser lembrado daquilo que é no mundo público da imagem. Mundo cuja ética está baseada em estética. Esse mundo desenraizado de Delphine e Coleman é profundamente desconfortável e impessoal, incapaz de realizar uma mínima harmonização entre vida pessoal e profissional. Este é um mundo diferente daquele de antes da segunda guerra, um mundo cujo espaço público está desgarrado do espaço privado, repleto de números, sucessos e fracassos, disfarçados de palavras politicamente corretas, como resiliência e superação. Indivíduos perfeitos, mas incapazes de lidar com histórias, afetos, realizações verdadeiras e muitas perdas. Pessoas que se satisfazem em seus quartos, com medo do fracasso, escrevendo anúncios desesperados, como Delphine.

É também um mundo de pessoas submetidas à autoridade institucional, não do estado, mas de uma corporação, seja ela universitária ou empresarial, com rígidas regras de moral para dissimular um suposto ambiente de família, igual ente fantasioso, e de possibilidade de concretização de aspirações de toda natureza. Se juntarmos à eterna vigilância da internet e das câmeras espalhadas no mundo, podemos dizer que 1984 já chegou, mesclado a um domínio e massificação cultural de Admirável Mundo Novo. Ainda que possamos escolher a marca das roupas que usamos e o destino das nossas próximas férias. Pão e e circo. O politicamente correto é uma encenação pública de moral.
No final do livro temos outro ponto de grande eloquência de Roth. Ele cria um encontro fortuito entre Nathan Zuckerman (narrador amigo de Coleman) e o ex-marido de Faunia, Lester o suposto assassino do casal. Durante todo a narrativa Nathan nos induz a pensar que Lester teria matado o casal de amantes ao provocar um acidente automobilístico. O diálogo final desmonta esta hipótese sem deixar claro se ele teria cometido o ato ou não, apesar de ter a intenção. Nathan estaria sendo precipitado em seu julgamento, tanto como Delphine e o restante do mundo. Ao criar a dúvida, Roth nos pergunta: não estamos todos nós criando fantasias a respeito dos outros baseados em nosso pre-julgamento, bem embasado ou não? Esta reflexão nos leva mais além. Se todos julgamos, parte essencial do discernimento, qual é o limite deste nosso julgamento? Qual a função primordial do Estado, não seria a intermediação do conflito para se evitar a barbárie? Esqueçamos do totalitarismo e do mau uso do aparelho do estado, males muito presentes. Pensemos na abolição do estado como mediador. Pensemos no nazismo, instituição mais moralista e politicamente correta já criada pelo ser humano. Afinal, o nazismo visava um ideal, a purificação da humanidade, era totalitário e moralizador e criou, o que nos interessa aqui, tribunais descentralizados com forte participação da população. Para que a lei estivesse introjetada em cada um, cada indivíduo sendo o fiscal da moral totalitária. Quantas vezes esta pretensa justiça, voltada para contenção do crime e eliminação de judeus, não foi utilizada pelos cidadãos para resolver brigas de vizinho, brigas de casais. Quantas vezes dívidas não foram resolvidas com o campo de concentração, ou esposas indesejadas enforcadas por supostamente terem sangue sujo? O politicamente correto, a vigilância moral do indivíduo de alguma forma traz esta forma de socialismo distorcido, bem à moda do norte, de volta à tona.
As respostas não estão em 'A marca humana', Roth nem ao menos esboçou uma digressão neste sentido, mas com certeza as perguntas estão. Porque o politicamente correto não pode ser discutido somente como uma benfeitoria ou como uma linguagem, mas dentro de um contexto e como uma ideologia.
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