O iluminado
- Renato Grinbaum
- 24 de out. de 2018
- 5 min de leitura
O que é um bom livro?

É tão difícil responder, talvez não haja uma resposta. Até porque todo argumento utilizado para dizer que um livro é bom pode ser aplicado a um que é ruim. Contar uma boa história faz um livro ser bom. Sem dúvida, mas bons contadores de histórias nem sempre escrevem como escritores e muitos livros não têm histórias para contar.
Talvez esteja nas ideias que o livro discute a sua qualidade. Mas no terreno das ideias estão mais as identidades e as próprias ideias, nem sempre a literatura. Um bom ensaio não é literatura, às vezes lemos livros que são belos, bem narrados, emocionam. São boa literatura, ainda que uma literatura que apele para o sentimento frequentemente não venha a ser vista como literatura.
A literatura se basta.
Mas nada mais místico ou autoritário que um argumento vazio.
O que encanta em "O Romance Luminoso", obra póstuma de Mario Levrero. Certamente não é o enredo, pois necessariamente ele não tem um. É um diário, onde ele descreve sua rotina de depressão, a luta com as janelas do windows em seu computador, seu quase romance com CHL. Ainda assim ele prende, ele encanta, nos faz querer ler cada vez mais, ainda que pareça não ter ideia ou ações muitas vezes. Levrero narra. E no meio de suas narrativas, ele reflete. O leitor aguarda uma nova reflexão. Em seu metarromance, ele faz crítica literária, teoria estética, autoficção. Tudo imerso numa série de fatos irrelevantes que são igualmente sedutores.
Talvez a literatura seja a capacidade de imersão na mente do outro. Talvez. Ainda assim, "O Romance Luminoso" é genial. Em seu prólogo gigantesco para um curto romance. Algo como "Fogo Pálido", de Nabokov, um romance escrito nas notas de pé de página.

"É um excelente escritor, por algum motivo menosprezado. Eu mesmo o menosprezava, talvez porque teve muito sucesso, e porque sua forma narrativa é bastante humilde. Lembro-me de que na minha casa havia vários livros dele, que estava na moda quando eu era criança ou bem jovem, e inclusive passaram pelas minhas mãos vários exemplares desses mesmos livros quando eu era livreiro, e nunca cheguei a lê-los. É muito provável que, se tivesse lido, naquela época, não me interessariam nem um pouco. Quando se é jovem e inexperiente, procura-se nos livros enredos chamativos, assim como nos filmes. Com o passar do tempo, a pessoa vai descobrindo que o argumento não tem grande importância; o estilo, a forma de narrar, é tudo. Assim, posso assistir ao mesmo filme ou ler o mesmo livro inúmeras vezes, inclusive um romance policial cuja resolução eu me lembro de cabeça." "Continuo interrompendo sra. Rosa Chacel; com Beckett, agora, e com um livro sobre Beckett, um ensaio com algumas anotações biográficas que achei muito interessante, apesar de os ensaios me cansarem. Mas minha curiosidade por Beckett era muito grande, e esse livro me iluminou várias coisas. Antes tinha lido um conto muito, muito cômico chamado “Primeiro amor”, e agora estou lendo outros contos. Beckett sempre consegue me arrancar gargalhadas. Sei, é claro, que sua obra não se esgota na comicidade, e esta é precisamente uma das minhas discrepâncias com o autor desse livro aí. O autor refuta quem busca significados filosóficos especiais em Beckett e interpreta sua obra a partir desses significados; com isso estou perfeitamente de acordo. Também penso que a Arte, em geral, não deve ser medida pelo conteúdo. Mas o autor, um alemão, exagera um pouco ao tirar toda a importância dos significados. Em parte se guia pelo que o próprio Beckett diz, mas é sabido que os autores nunca dizem exatamente a verdade acerca das suas obras, muitas vezes porque a desconhecem. O que quero dizer, acerca da minha discrepância com o alemão, é que: está bem, Beckett não constrói suas obras em função de nenhum significado ou mensagem ou ideologia, e assim deve ser a Arte; perfeito. Mas minha discrepância está no fato de que não dá no mesmo um personagem se chamar Godot ou de outra maneira. Esse Godot tem um significado, evidentemente uma referência a Deus. Isso, estou de acordo, não explica a obra nem o que dá força a ela, ou o que justifica sua existência; mas não neguemos o fato de que também possui significados na obra. O importante da literatura não está nas suas significações, mas isso não quer dizer que as significações não existam e que não tenham sua importância. Muitas vezes disse e escrevi: “Se eu quisesse transmitir uma mensagem ideológica, escreveria um panfleto”, com estas ou outras palavras. Mas isso não quer dizer que minha literatura não expõe ideias, ou que não vale a pena mencionar essas ideias."
"Estou entediado. É duro ter que confessar isso, confessar a mim mesmo, mas é verdade. Nunca pude entender as pessoas que se entediam, e sempre incomodei os entediados apontando-lhes a etimologia da palavra em espanhol, aburrido. Hoje foi minha vez. “Sinto horror de mim mesmo”; “estou aborrecido”. Durante cinco anos estive preparando essa armadilha mortal, transferindo meus interesses, um por um, à máquina prodigiosa. Hoje quase tudo que é minha vida está ali dentro, e agora a máquina está desligada. Desde ontem, segunda-feira, às seis e meia da noite (sim, passei uns minutos do horário-limite, mas tinha minhas razões; tive que preparar a impressão de alguns gráficos para a minha médica, gráficos e outros dados que finalmente decidiram pela suspensão do tratamento com o antidepressivo por não ter tido resultados significativos no que diz respeito à diminuição da quantidade diária de cigarros que consumo) (dezessete vírgula três contra dezenove dos meses anteriores ao tratamento) (aproximadamente uns dois por cento, ao longo de dois meses e meio) (é verdade que há algumas coisas a favor do tratamento, que não vou explicar aqui, mas a decisão da minha médica me parece correta) (em outro assunto paralelo, a pressão arterial parece ter se mantido estável: catorze por oito). Dizia que estou entediado, e devo analisar um pouco esse estado. O tédio vem misturado com algo mais forte, algo como uns surtos que me atacam, de quando em quando, de um sentimento parecido com pânico ou com uma extrema desolação; como se, de um momento para o outro, tudo fosse perder seu significado. Nesses momentos, minha vista se dirige para o local onde está o computador. Não o enxergo, porque estou separado dele por uma parede, mas não tenho dúvidas da intenção do movimento dos meus olhos, porque junto aos olhos há algo que se move dentro do meu peito. É algo parecido àquela laceração que senti quando estava prestes a descer do carro de Chl, mas não tão intenso, é claro. Doloroso, ainda assim. Ao mesmo tempo, noto que a maioria dos meus pensamentos continua dirigida ao computador, à linguagem de programação e, em geral, a qualquer coisa que tenha uma mínima relação com a máquina. Resisti até agora ao impulso de ligá-lo, embora tenha boas razões para isso (certas questões práticas); decidi que isso ficaria para mais tarde, no horário permitido (das oito da manhã até a meia-noite; amanhã, por ser terça-feira e, portanto, dia da oficina virtual, eu me permito, assim como nos sábados, um horário extenso)."

"Você diz: partirei para outra terra, outro mar, para uma cidade muito mais bela do que esta pôde ser ou almejar… Esta cidade onde cada passo aperta o nó corredio, um coração num corpo enterrado e empoeirado. Quanto tempo terei que ficar confinado nestes tristes subúrbios do pensamento mais vulgar? Onde quer que eu olhe alçam-se as negras ruínas de minha vida. Quantos anos passei aqui desperdiçando, jogando fora, sem benefício algum… Não há terra nova, meu amigo, nem mar novo, pois a cidade te perseguirá, pelas mesmas ruas andarás interminavelmente, os mesmos subúrbios mentais vão da juventude à velhice, e na mesma casa acabarás grisalho… A cidade é uma jaula. Não há outro lugar, sempre o mesmo porto terreno, e não há barco que te arranque de ti mesmo. Ah! Não compreendes que, ao arruinar tua vida inteira neste lugar, você a desgraçou em qualquer parte do mundo?"
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